Sandálias
- Juliana Dias
- 14 de set. de 2020
- 2 min de leitura
Rosa mexia a colher de pau em círculos constantes pela beira de um tacho de cobre. Eu já sentia o perfume do figo cozido e esperava sentada em um tamborete alto de madeira ao lado do fogão. Eu, com meus oito anos de idade, era a companhia mais curiosa que minha vó poderia ter. Ansiava pelo doce com queijo mineiro e pelas histórias daquela mulher com corpo já modelado pelo eterno avental florido. Seus olhos quase sempre acesos e interessados pela vida. Suas mãos e braços estampavam muitas manchas nascidas do encontro do Sol com o tempo, ela dizia. Rosa andava de um jeito firme como que para espantar o cansaço. Nos pés, o mesmo calçado de ontem, parecia ter sido usado por sua mãe e por todas as suas ancestrais. Sandálias pálidas. Talvez para compensar o colorido de sua face quando lidava com o jardim e o lenço sempre novo na cabeça.
Desligou o fogo e esparramou o doce em uma travessa de alumínio para o tal do choque térmico. Rosa fatiou o queijo com delicadeza e me ofereceu um pedaço junto com seu sorriso. Seguimos até o quintal para olhar a última rosa branca que tinha desabrochado. Eu, com pensamento no doce, segurei firme sua mão áspera e penetrei junto com Rosa no seu universo particular. Ela ia caminhando por entre as plantas como se fosse a primeira mulher a nomear cada coisa na natureza. Quando olhei para sua mão sobre a minha vi uma flor do deserto abrindo no lugar dos dedos. Seus olhos brilharam e Rosa começou a se misturar com as flores mais e mais. Ao redor de seu pescoço brotaram muitas rosas miúdas que contornavam sua pele como cachecol colorido. Nas pernas e pés vi jasmins brancos e bicos de papagaio, desembocando pelos pés em vermelho escarlate que coloriam finalmente as sandálias do passado. No seu ventre, bem ali onde sua barriga tantas vezes cresceu e acolheu a vida e, algumas vezes, também a morte, vi uma caliandra do cerrado, despontando do interior do seu útero para o mundo, com seus pontinhos de pólen dourado se derramando sobre meus pés e recolorindo minhas sandálias no mesmo tom das suas. Carícia irresistível. Rosa sorria feliz, exalando um cheiro de dama da noite e continuava a batizar cada planta em uma linguagem única, dizia nomes que eu nunca havia ouvido, falava em outra língua. Seus movimentos eram delicados e de sua boca surgiam minúsculas florezinhas roxas e amarelas. Amor perfeito, nome de flor. Rosa, nome de vó.
Texto de Juliana Dias em homenagem à Ana Rosa de Freitas, sua vó.

Não tem como não pensar na batata frita da minha vó goiana, Zanira e em um alpendre cheio de vasos de flores. Comida mineira,parece que já vem com carinho junto, amo!